Por Zilda de Assis (*) - O surto de microcefalia, registrado no Brasil desde o segundo semestre de 2015, escancarou a barbaridade de um povo que sempre se acreditou generoso. Fraternidade, liberdade e igualdade compõem o lema da Revolução Francesa que marcou a entrada da humanidade na Idade Contemporânea. Entretanto, a prática trouxe-nos uma verdade inconveniente: aquela que diz que os homens não têm competência para sair da era da barbárie.
Em meio a uma situação desesperadora capitaneada pelo egoísmo, pela inveja, pela frustração, a microcefalia expõe a fragilidade do amor ao próximo que deveríamos ter. Se observarmos a fundo, perceberemos que ainda somos analfabetos em tudo o que diz respeito à implantação prática da
fraternidade humana.
O egoísmo e a falta de capacidade de lidar com as diferenças e, principalmente, com a deficiência levam as famílias a optarem por adiar o sonho de ter filhos. Como se não bastasse, muitas pensam seriamente na possibilidade de realizar o aborto, nos casos em que o feto seja diagnosticado com a doença.
Para uma nação, cujos filhos se orgulham de serem religiosos, este fato é uma prova cabal da indigência espiritual desta gente. Como se não bastasse a má fé de pseudo líderes religiosos, a prática do amor preconizada pelo Salvador, que afirmam seguir, não resiste à vaidade e à necessidade que se tem de pelo menos parecer perfeito. Esses que se dizem líderes, por exemplo, se enriquecem à custa da extorsão do dízimo, via exploração da fé cega. Aqueles que os seguem sucumbem diante de preconceitos e apego a conceitos literais da palavra de Deus. Nunca se preocuparam de fato com a
fraternidade pregada e praticada por Jesus. Este último, por sinal, foi expulso do planeta, só pelo fato de que nos mostrava, na prática, que podemos sim ser generosos e dignos. Agora, muitos já pensam em assassinar seres que não têm a menor condição de se defenderem.
Falta
fraternidade, respeito à vida e sensibilidade. Sei bem o que é uma mãe ter medo de dar á luz uma criança com deformidades físicas ou mentais. Quando estava grávida, nas ultrassonografias que foram realizadas, não foi possível ver os pés do meu filho. Via-se tudo: mãos, costelas, braços, órgãos internos, até as pernas. Só os pés não apareciam. Por este motivo, passei metade da gestação consciente de que lutaria por ele, mesmo que nascesse sem os pés.
Era uma sensação extremamente desconfortável. Porém, aquele filho, que não havia sido planejado, foi e é amado desde a primeira suspeita da gravidez. Caso nascesse deficiente, eu moveria o mundo, como fiz em todos os momentos em que ele foi agredido emocionalmente pela sociedade. E você pode ter certeza de uma coisa, além da morte: seu filho será agredido pela sociedade, mesmo que seja uma cópia scaneada do Brad Pit. O motivo? O ser humano ainda não aprendeu a conviver com o que não lhe convém.
Onde se discute o aborto, falta fraternidade
Voltando à Revolução Francesa que trouxe novamente à tona a necessidade de se ter
fraternidade, o momento que vivenciamos atualmente é indigesto e profundamente opositivo aos seus ideais sensíveis e libertários. Naquela ocasião, o povo francês se reunia em torno dos ideais de justiça social e mostrava para o clero e nobreza onde era a sede do poder. Hoje, vive-se uma profunda guerra de classes onde nem pobreza, nem riqueza conseguem se articular para defender seus interesses. Pior ainda, é assistir no meio disso tudo, uma tentativa de retomar a discussão de legalização do aborto em função do surto da microcefalia.
Entendo que a proibição legal não seja capaz de promover o amor e a responsabilidade na mentalidade das pessoas. Apesar de ser crime abortar, milhares de mulheres optam por esta prática anualmente, inclusive matando um percentual significativo delas. Mas em tempos onde a prevenção é largamente difundida e acessível, quem não quer a experiência da maternidade, tem o dever incontestável de se precaver contra ela.
Aceitar a possibilidade de discutir uma permissão para aborto de fetos com microcefalia é atestar a incapacidade de lidar com dificuldades e problemas. Além disso, todos nós nos horrorizamos com os gregos que matavam os bebês que nasciam com qualquer deficiência, em função do culto à perfeição física. Se eles eram considerados injustos, por admitirem apenas pessoas belas e saudáveis, porque nós nos damos o direito de considerar legal o aborto nestas condições?
Milhares de deficientes físicos já provaram que são capazes de ir aonde muitas pessoas ditas normais jamais conseguiram estar. Dão show de habilidade, força, resistência e elegância nos Jogos Paraolímpicos, por exemplo. Mostram que a raça humana pode muito mais do que ousa imaginar e que não podemos prever o futuro, por mais que nos instrumentalizemos para isso.
Sem fraternidade, para continuar na zona de conforto
A falta de
fraternidade em torno da microcefalia está alicerçada na necessidade que os indivíduos têm de viverem em suas zonas de conforto. Uma mãe de um bebê nesta situação sabe que vai precisar tirar força de onde nem sabe, para conseguir oferecer qualidade de vida a ele. E é esta necessidade que leva muita gente boa a ser preconceituosa e totalmente egoísta. Ser bom é bom, mas dá muito trabalho, embora a recompensa deva ser excepcional.
O futuro não existe e se traduz em uma grande incógnita. Ninguém garante de uma criança com todas as funções físicas e cognitivas perfeitas será um adulto responsável e socialmente equilibrado. A prática tem nos mostrado que uma infinidade de pessoas nestas condições sucumbem às drogas, ao crime, à corrupção prejudicando em muito a si mesmas e a todos ao redor. Da mesma forma, muitos deficientes se tornam personalidades respeitabilíssimas, exatamente por superarem suas limitações.
A jornalista Ana Carolina Cáceres é um bom exemplo para esta turma que defende o aborto para fetos atingidos por essa síndrome. Sua família deu exemplo de
fraternidade ao recebê-la tal como foi formada na gestação. Hoje, com 24 anos, Ana Carolina é graduada em jornalismo, tem seu próprio blog e destaca que ela e mais milhares de portadores da microcefalia têm uma vida como a de tantos outros que não são atingidos por ela.
Para esta epidemia, o que deve ser combatido além do mosquito, que tem sido apontado como transmissor do vírus que causaria a síndrome, é o preconceito. E ele precisa ser eliminado através da
fraternidade. Essa capacidade de amar o outro como se ele fosse da sua família é capaz de remover montanhas e produzir bem estar, qualidade de vida, felicidade mesmo. Eu, você e tantos outros, que acompanhamos a evolução da espécie, precisamos ter em mente que as dificuldades que aparecem na vida de cada um tem tão só a função de nos ensinar a sermos melhores, não a retroceder como se ainda fossemos bárbaros.
(*) Zilda de Assis é jornalista, escritora e
autora do blog Por que gente é assim?
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