"Brasil ainda faz política com afeto, não com a cabeça"
"Em entrevista à DW Brasil, historiador diz que é preciso
combater uma sociabilidade que se baseia em tratar o público como o privado:
"Há uma elite que se considera realmente superior ao restante da
população."
Há pouco mais de 80 anos do lançamento do clássico Raízes
do Brasil, o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, que não
distingue o público do privado, parece ainda presente na sociedade brasileira,
apesar das previsões do intelectual que a cordialidade desapareceria com a industrialização.
Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda apresentou pela
primeira vez o conceito, resultado de uma sociedade rural autoritária
caracterizada pela família patriarcal. Segundo o intelectual, esse homem
cordial dominou as estruturas públicas do país, usando-as em benefício próprio.
No entanto, não foi exatamente isso o que ocorreu. Para o
historiador João Cezar de Castro Rocha, a cordialidade é uma característica de
sociedades hierárquicas e desiguais. Em entrevista à DW Brasil, o autor dos
livros Literatura e cordialidade: O público e o privado na cultura brasileira e
Cordialidade à brasileira: mito ou realidade? debate o conceito de homem
cordial e sua ligação com a corrupção.
"O problema
da corrupção endêmica no Brasil só terá solução quando efetivamente
constituirmos uma nação, quando em lugar de homem cordiais e elites que se
consideram superior aos outros, nós formos de fato todos cidadãos",
destaca Castro Rocha.
DW Brasil: O conceito de "homem cordial" parece
mais atual do nunca. Mas Sérgio Buarque de Holanda previa que ele desapareceria
com a industrialização e o fim da sociedade rural. Na sua opinião, por que ele
não desapareceu?
João Cezar de Castro Rocha: Eu proponho que, na verdade,
o homem cordial não é apenas fruto de uma sociedade agrária, mas característico
de uma sociedade hierárquica e desigual, como a sociedade brasileira, que foi
fundada sobre o trabalho escravo e que ainda hoje mantém a consequência do
longo período de escravidão. Então, o homem e a mulher cordiais não apenas permaneceram,
como pelo contrário, cresceram e estão muito fortes.
E isso é visível também na política?
A atual política brasileira, marcada por uma polaridade
radical, por intransigência inédita e por uma intolerância completa é
absolutamente cordial no sentido próprio do termo, ou seja, é uma política que
se faz com afetos, com estômago e não com a cabeça.
A corrupção seria característica própria do "homem
cordial"?
Seria ingenuidade imaginar que o homem cordial é por
vocação mais corrupto do que a seriedade alemã ou puritanismo anglo-saxão. A
corrupção faz parte de toda e qualquer estrutura de poder, mas a questão
central de uma corrupção que pode ser caracterizada como cordial é a sua
associação com a ideia da hierarquia e da desigualdade.
No Brasil, historicamente, há uma elite que se considera
realmente superior ao restante da população e que, por isso, considera ter
direito a saquear a coisa pública. Nós não temos um Estado no sentido próprio
do termo, temos é um aparato estatal apropriado pelas elites.
O senhor fala da corrupção nas elites, mas é possível
afirmar que ela ocorre também nas camadas mais baixas, que é algo generalizado?
É preciso diferenciar a corrupção de uma sociedade que
tem um cotidiano esquizofrênico. Em 1808, quando a família real veio para o
Brasil, não havia casas suficientes, e o rei mandou pintar nas portas de
algumas a inscrição "Propriedade Real”, PR, obrigando os donos a deixá-las
para os nobres portugueses. O povo traduziu PR como "ponha-se na rua”. A
história da cultura brasileira é uma oscilação constante entre propriedade real
e ponha-se na rua.
Existe uma lei e sabemos que ela não é cumprida porque
não há as condições práticas para cumpri-la, ao mesmo tempo, não podemos
verbalizar o caráter vazio da lei, então, desenvolvemos uma sociedade
profundamente esquizofrênica no sentido próprio do termo. Dizemos A sabendo que
precisamos fazer B. Eu faria uma diferença entre o princípio esquizofrênico e a
corrupção.
Qual seria essa diferença?
Há um princípio de maleabilidade que pode levar a uma
corrupção, mas eu diria que corrupção hoje no Brasil é a apropriação privada
dos recursos públicos. Não dá para comparar o senhor Emilio Odebrecht, roubando
bilhões de dólares, com o pobrezinho do brasileiro que no serviço público
oferece um cafezinho para o atendente. Se dissermos que tudo é a mesma
corrupção é mais um meio que a elite tem de se desculpar.
Mas o jeitinho, esse desvio do cotidiano, não legitimaria
de alguma forma a corrupção nas grandes esferas?
Acho isso é um equívoco, pois o que está à disposição da
elite brasileira, das empreiteiras, dos partidos políticos e de políticos não é
um jeitinho, é um tremendo jeitão, não tem comparação. Além disso, a sociedade
foi organizada de uma forma esquizofrênica, o Estado sempre impôs ao povo
inúmeros PR e o jeitinho é uma estratégia, em alguns casos, para driblar a
impossibilidade de cumprir o PR.
Mas se simplesmente legitimarmos o jeitinho, nós
estaremos favorecendo a corrupção. Acho importante que, no cotidiano, o
brasileiro comece, por exemplo, a apenas atravessar o sinal quando ele estiver
aberto para pedestres. É muito importante uma mudança de cultura.
Como seria possível acabar com esse ciclo desta corrupção
generalizada?
Do ponto de vista do Estado brasileiro é preciso acabar
com esse discurso tolo de que tem muito Estado no Brasil, pois não tem. O
Brasil tem Estado de menos para o que de fato importa. É preciso ainda
implementar mecanismos eficientes de controle que tenham como base a
transparência. Do ponto de vista da sociedade é começar uma discussão a longo
prazo que necessariamente deve passar pela educação e, sobretudo, por uma
consciência crescente para mudarmos nossa forma de agir no trato diário. Por
exemplo, não posso defender a universidade pública e não dar minhas aulas.
O problema da corrupção endêmica no Brasil só terá
solução quando efetivamente constituirmos uma nação, quando em lugar de homem
cordiais e elites que se consideram superior aos outros, nós formos de fato
todos cidadãos.
O que é preciso combater?
É preciso combater uma sociabilidade que se baseia em
tratar o público como o privado, e isso são o homem ou a mulher cordial. A
sociabilidade cordial é movida pelo coração, tanto ama quanto odeia, tanto pode
ser autoritária quanto afetiva, mas impõe fundamentalmente a ordem pública a
lógica do privado.
Sem dúvida para superar esse tipo de corrupção precisamos
fazer que o Estado brasileiro finalmente seja público e deixe de ser um parque
de diversões para que as elites econômicas, políticas e financeiras deste país
continuem tirando os recursos públicos como se fossem privados."
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