quinta-feira, 25 de junho de 2020

Nova lei do saneamento permitiu passar a boiada da privatização da água, por Luiz Nassif

Por Luiz Nassif, no jornal GGN: Quando li as primeiras críticas ao projeto da Lei do Saneamento, mencionando a "privatização da água", confesso que achei que fosse algum exagero de setores mais estatizantes. Lendo o projeto, no entanto, um dos parágrafos era inusitado:
2º As outorgas de recursos hídricos atualmente detidas pelas empresas estaduais poderão ser segregadas ou transferidas da operação a ser concedida, permitidas a continuidade da prestação do serviço público de produção de água pela empresa detentora da outorga de recursos hídricos e a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final, com objetivo de compra e venda de água


O projeto institui, de fato, essa figura esdrúxula da "empresa produtora de água", um personagem diferente da empresa que cuidará do saneamento. Ela definirá o que fazer e como fazer com a água. A regulação será apenas sobre a empresa de distribuição da água. 

Como assim? O bem público por excelência, a água, terá um proprietário, alguém intitulado de "produtor de água"? 

Ora, a água serve para inúmeras finalidades. É um direito essencial, condição essencial de sobrevivência, garantidora da saúde. É geradora de energia, ponto central de saneamento, pesca, hidrovias. Nas bacias hidrográficas, o mau uso em uma ponta afeta o uso em outra. Essa complexidade e integração exige uma engenharia social complexa para a boa gestão. De repente, todo esse conjunto de direitos essenciais ficará sob a guarda de um "produtor de água"? 

Aproveitaram a Covid-19 para passar a maior boiada da história recente do país. Nem mesmo a compra de grandes extensões de terras brasileiras por estrangeiros, é um risco maior do que essa loucura - endossada pela mídia. 

Ora, há espaço para setor privado e público. Há setores em que o setor privado é mais eficaz. Outros em que o controle estatal é relevante. Entram aí os setores ligados ao conceito de segurança, cuja atividade afeta outros setores. E outros que são monopólio natural. A água cumpre todos os requisitos para não ser privatizada. 

Hoje em dia, está em discussão no Congresso americano a Lei de Acessibilidade, Transparência, Equidade e Confiabilidade da Água, propondo US$ 35 bilhões por ano para revisar a infraestrutura de água no país. 

Recentemente, a Sociedade Americana de Engenheiros Civis atribuiu à infraestrutura de água potável dos EUA o grau D (o último das agências de risco) e D+ para infraestrutura de águas residuais.

No país mais rico da planeta, 1,7 milhão de americanos não têm acesso a instalações hidráulicas básicas, como banheiro, chuveiro e água corrente básica. Cerca de 200 mil famílias não possuem sistema de esgoto. Em alguns locais da Carolina do Sul, famílias são obrigadas a viajar 30 Km por mês para coletar água potável.

E está se falando de um país com renda média elevada, sem problemas de seca e sem problemas de miséria aguda.   

Segundo Bernie Sander, candidato da candidato do Partido Democrata para as eleições, antes da Covid-19, quase 14 milhões de famílias não conseguiam pagar suas contas de água, devido ao aumento e preços d mais de 40% desde 2010.

Pelas projeções, dentro de cinco anos, a inadimplência poderia afetar um terço das famílias americanas. 

O objetivo da Lei de Acessibilidade seria conceder subsídios às famílias e comunidades para reparos na infraestrutura hídrica, substituição das linhas de transporte de água e possibilidade de filtrar com segurança compostos tóxicos de sua água potável. Permitiria melhorar também poços domésticos e sistemas sépticos. 

Nas próximas décadas, a água será a mais importante commodity do planeta. O Brasil possui água em abundância, aquíferos, rios. É um bem público. Por isso não pode ser propriedade nem de estados, municípios, menos ainda de empresas privadas. Municípios têm direito de dispor sobre os serviços de saneamento, opinar sobre o uso da água. Mas nem mesmo eles podem ser proprietários. 

Imagem: reprodução/Foto: Luiz Costa/SMCS

[A quem interessa a possibilidade de privatização do saneamento básico (?): Nessa quarta-feira, 24/06, o Congresso Nacional aprovou, com maioria de 83%, o Projeto de Lei 4.162, que regulamenta a concessão do serviço de saneamento básico em todo país. Em 2012, o Brasil assinou um pacto de universalização dos serviços de saneamento básico, através do Objetivo do Desenvolvimento sustentável (DS) 6. De lá pra cá, pode-se dizer que nada avançou em termos de alcance, ou sequer de busca de parcerias e/ou incentivos que possibilitassem o crescimento da disponibilização dos serviços para a parcela da população desabastecida. 
(...) Como o marco regulatório pretende alcançar esses invisíveis do saneamento, que residem em regiões que demandam elevado nível de investimento de baixo ou nenhum retorno financeiro se, até o presente momento, nem as empresas pública, que não seguem as mesmas estratégias e propósitos do setor privado, não foram suficientes para contemplá-los?
(...) Somente modelos muito bem desenhados de privatização, onde se coloque o ônus do investimento para garantir a universalização como contrapartida à privatização das empresas sólidas e bem estruturadas, serão garantidores da universalização. O atual PL 4.162 não traz mecanismos garantidores do alcance desse objetivo. 
E a sociedade, em sua passividade e acúmulo de desconhecimento das causas embrionárias de suas desigualdades, deve seguir à margem dos processos que a define enquanto sujeito, permitindo que o Brasil assine, mais uma vez, atestado de incompetência na sua capacidade de desenhar e implementar suas políticas públicas. Os investidores sabem fazer conta e medir o risco Brasil: seus interesses não são definidos, nem muito menos garantidos pela Constituição.] 

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