terça-feira, 22 de março de 2022

As guerras do nosso tempo servem para quê? Por Aldo Fornazieri

Por Aldo Fornazieri*: A partir da década de 1990, marcada pelo colapso da União Soviética, cresceu o número de estudos acerca do possível declínio das guerras. Essa questão vinha sendo posta em décadas anteriores, como consequência do período de paz relativa no pós-Segunda Guerra Mundial e da aversão ao risco que as duas superpotências (EUA e URSS) alimentaram durante a Guerra Fria.
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Com a nova ordem criada a partir de então, a sensação de que o mundo estava vivendo um período de paz mais longo nas relações interestatais cresceu, mesmo com a chamada Guerra ao Terror, promovida pelos EUA e envolvendo o Iraque, o Afeganistão e a Al-Qaeda.


A maior parte dos estudos toma como ponto de referência o número de mortos em batalhas. Os estudiosos chegaram a poucas conclusões exaustivas até agora, por causa do relativismo dos dados. Eles mostram, por exemplo, que, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, houve um declínio relativo do número de mortos por milhão de habitantes em conflitos armados. O risco de morrer em guerras entre 1947 e 2007 foi 66% menor do que de 1816 a 1946. Mas os mesmos estudos indicam que as duas guerras mundiais representaram uma elevação exponencial do número de mortes em relação às décadas anteriores. Então, a tendência não é conclusiva.


Os estudos enfrentam problemas metodológicos, como a arbitragem dos recortes temporais para comparação e a falta de consenso acerca da classificação da importância das guerras. A maioria dos estudos indica que, a partir dos anos 1990, estabeleceu-se um período mais consistente de paz relativa que, agora, pode ter sido quebrado com esta guerra na Ucrânia.


Talvez a pergunta que os estudiosos devessem acentuar fosse outra: As guerras do nosso tempo servem para quê? Note-se que os conflitos mais importantes do pós-Segunda Guerra Mundial – excetuando-se as guerras árabes-israelenses, as de libertação colonial na África e as indo-paquistanesas – envolveram as potências imperiais dos EUA e da ­Rússia. Os norte-americanos se envolveram diretamente nas guerras das Coreias, do ­Vietnã, do Iraque, do Afeganistão, da Síria e da ­Líbia. A Rússia envolveu-se , entre outras, em guerras no Afeganistão, na Chechênia, na Geórgia, na Síria e na Crimeia.


Em todos os tempos, as potências imperiais usam as guerras para se expandir. Isso ocorre por meio da exportação dos excedentes militares, religiosos, industriais, financeiros e comerciais. Mas as guerras também foram um dos principais fatores de declínio dessas potências, vide o caso dos persas, macedônios, romanos, germanos, francos, britânicos etc.


As guerras exaurem os excedentes exportáveis, reduzem as capacidades distributivas internas, aumentam os conflitos internos das potências e, por fim, provocam o seu declínio. Em termos militares ­e/ou políticos, os EUA perderam ou não ganharam as guerras do Vietnã, do Iraque, do Afeganistão e da Síria. Os custos elevadíssimos desses conflitos e com a manutenção da máquina militar são apontados como fatores de declínio relativo dos EUA.


Os russos perderam a guerra no Afeganistão e, mesmo que saiam militarmente vitoriosos da Ucrânia, colherão uma derrota política e econômico-financeira. A Rússia tem capacidade limitada de exportação de excedentes e pode acelerar o declínio de seu poderio. Acrescente-se que a China, que não adota uma estratégia de exportação de excedentes militares por meio de guerras, vem obtendo vantagens relativas de poder tanto em relação aos EUA quanto à Rússia.


O que o mundo pode estar vivendo a partir do século XXI, quando o poder mundial se tornou multipolar, é o declínio da importância das guerras como fator de constituição de poder hegemônico. Além dos custos imensos, elas provocam o ódio e a insurgência dos povos dominados, o que se torna contraproducente para o exercício da hegemonia. Os grandes estrategistas de todos os tempos sempre asseveraram que nenhuma potência mantém a hegemonia puramente pela força.


No caso da guerra na Ucrânia, além do custo militar e político, a Rússia arcará com o forte impacto das sanções econômicas e comerciais. E se a Rússia é, de fato, uma potência militar, não o é do ponto de vista econômico e financeiro, aspectos fundamentais para a manutenção de máquinas de guerra por tempo prologando. Na era das comunicações digitais a opinião pública dos povos não quer ver a destruição e a morte, e isto tem peso nas decisões dos governos e das corporações. Os agredidos obtêm a empatia e os agressores, o repúdio. O temor de uma guerra nuclear e os graves problemas ambientais e sociais geram aspirações de um mundo de paz e de soluções para esses problemas. Um mundo menos violento e mais humanizado são aspirações que se chocam contra as guerras.


*Aldo Fornazieri: Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor.

Imagem: reprodução/Foto: Indranil Mukherjee/AFP


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