segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Cinema brasileiro: 'Bacurau, o futuro é agora: ou luta ou morre'. Por Alexandre Figueirôa

Por Alexandre Figueirôa*, em O Grito! - Dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano, o filme Bacurau chega às telas dos cinemas no próximo dia 29/08. O elenco conta com artistas consagrados como, Sônia Braga, Udor Kier, Barbara Colen, e mostra que a distopia imaginada pelos diretores, já é real no Brasil de hoje. Assista ao trailer oficial do filme, no final do post.  
O filme tem um roteiro, "que vai tecendo a trama com precisão milimétrica [no qual os diretores], usam as artimanhas das fórmulas dos filmes de gênero para falar de algo muito mais profundo: de como a solidariedade e a capacidade de unir forças são capazes de vencer as armas dos intolerantes e dos opressores". 


Bacurau, o futuro é agora: ou luta ou morre

Por Alexandre Figueirôa

Uma da potências e encanto do cinema é tronar concreto, aos nossos olhos, mundos possíveis. E não menos potente é quando nos mostra que somos capazes de resistir e mudar as coisas. Quando Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em 2009, idealizaram o argumento inicial de Bacurau, o Brasil estava seguindo um rumo em que acreditávamos no fim da miséria, na redução dos abismos sociais, que finalmente as mulheres, os indígenas, os afrodescendentes, os LGBTI+ teriam cada vez mais seus direitos reconhecidos e que deixaríamos de ser capachos do imperialismo norte-americano. 

Curiosamente e premonitoriamente, apesar de tantos avanços, eles provavelmente desconfiavam que o futuro continuava incerto e resolveram imaginar como seria, talvez, esse futuro.

2019. Bacurau estreia nas telas brasileiras depois de um début promissor no cenário internacional, conquistando o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes. Quando Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles e a equipe do filme atravessaram o tapete vermelho do Palais du Festival, em maio último, o Brasil já estava vendo os índices de miséria crescerem, os trabalhadores serem cada vez mais explorados e mulheres, indígenas, negros, lésbicas, gays e transgêneros começarem a perder o pouco que conquistaram.

E mais: o país voltando a ser entregue, a preço de banana, às empresas estrangeiras. Essa morte não estava anunciada, mas ela nunca deixou de pairar sobre nossas cabeças. Mendonça e Dornelles, como todos nós, descobriram que as forças sombrias do passado estavam de volta.

Bacurau, portanto, é um filme impressionante. Já nasceu com um destino traçado. Um futuro com cara de presente e um presente com cara de passado, desfiado em um pouco mais de duas horas, onde a ficção até então imaginada, bateu na nossa porta vestida de realidade. A partir da história de uma comunidade longínqua, perdida no sertão nordestino, que subitamente tem o registro apagado dos mapas digitais, esboça-se sem nenhum arrodeio, uma trama de luta, fundada na crença poderosa da capacidade de reação de quem se dá conta que os seres humanos não são cabeças de gado e podem mudar o rumo da história contra a opressão e o descaso de quem acredita que sues poderes são ilimitados. 

    
Uma obra mais que oportuna

Bacurau é um danado. É mistura de faroeste com ficção científica, de filme de suspense com filme de cangaceiro e ao mesmo tempo uma obra com identidade própria, uma identidade que vai além das referências a todos esses gêneros cinematográficos que são mostrados no decorrer da narrativa.

Mendonça e Dornelles, apoiados por um elenco de atuações marcantes (Sônia Braga e Udor Kier, mas também Barbara Colen) e por um roteiro que vai tecendo a trama com precisão milimétrica, usam as artimanha das fórmulas dos filmes de gênero para falar de algo muito profundo: de como a solidariedade e a capacidade de unir forças são capazes de vencer as armas dos intolerantes e dos opressores.

O grande mérito de Bacurau é, portanto, demostrar esse poder a partir da vivência de uma comunidade sem apelar para uma estrutura dramática coordenada por uma cartilha política panfletária, mas se valendo dos padrões de modelos engendrados pelos próprios gêneros com os quais o filme é construído. 

Em suas primeiras sessões de pré-estreia pelo Brasil afora, Bacurau vem obtendo uma repercussão mais do que favorável. As filas que se formaram, no Recife, por exemplo, para a compra de ingressos antecipados, já demonstraram o interesse do público pelo filme. No momento, essa enorme expectativa é valiosíssima por pelo menos duas razões. 

A primeira é o fato de uma obra do cinema brasileiro - que vem sendo vilipendiado e perseguido pelo "desgoverno" fascistóide, hoje, no poder federal - obter reconhecimento internacional e a promessa de se tornar sucesso de bilheteria, contribuindo para desconstruir a balela da pouca importância econômica do audiovisual nacional. 

A segunda é o  potencial que o filme tem, não de provocar uma revolução, mas de alcançar um público mais amplo, de ser uma obra que estabeleça uma comunicação mais estreita com a população em geral, sobretudo pela sua qualidade artística, evidente tanto na fotografia quanto no acabamento sonoro, de modo a comprovar que não é necessário se fazer concessões a um padrão estético simplório para conquistar  espectador.

Há alguns anos, fui convidado para um debate a ser realizado em praça pública no bairro de Tejipió, zona oeste do Recife. O filme exibido foi Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Quando recebi a proposta, a primeira coisa que me ocorreu foi se haveria um público significativo para assistir a um filme em preto e branco de um cineasta "difícil".

No dia, para minha surpresa, apraça estava cheia de gente. Provavelmente aquelas duas, três centenas de pessoas nunca tinham sequer ouvido falar de Glauber Rocha. A exibição começou e o silêncio era total. A primeira explosão de aplausos a céu aberto ocorreu na cena onde o vaqueiro Manoel (Geraldo Del Rey) reage à violência do patrão explorador. Ao final, muitos aplausos e o debate que se seguiu foi um dos mais interessantes que já participei até hoje. 

Não precisa dizer que estou torcendo para Bacurau despertar o mesmo sentimento entre os seus futuros espectadores e que eles (por que não sonhar?) não se contentem apenas em ver seus desejos projetados na tela.



*Alexandre Figueirôa é doutor em cinema pela Sorbonne (França) e autor dos livros Cinema Novo: A Nova Onda do Jovem Cinema e Sua Recepção na França (Papirus) e Cinema Pernambucano: Uma História em Ciclos (FCCR). É editor-executivo da Revista O Grito!

Imagem: reprodução/divulgação: Cinemascópio

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