terça-feira, 22 de abril de 2025

"Conclave" - A fragilidade de um homem diante do divino

Por Vanderlei Tenório, em Cinema/Sétima Arte: "É melhor uma fé imperfeita, mas humilde, do que uma fé forte e presunçosa. O Senhor não busca cristãos perfeitos." Estas palavras, proferidas pelo Papa Francisco durante o Regina Coeli de 24 Abril de 2022, ecoam como um sussurro de sabedoria que transcende o tempo e o espaço, tocando o âmago da alma humana. Ressoam, suaves e certeiras, na narrativa de "Conclave", de Edward Berger, encontrando morada na interpretação contida e profundamente emotiva de Raph Fiennes como o Cardeal Thomas Laurence.
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Em meio ao turbilhão de decisões políticas e eclesiásticas, uma alma perde-se. O Cardeal, homem de fé, vê-se a naufragar nas águas gélidas da dúvida. A sua crença, que outrora se erguia como uma rocha firme, esfarela-se como areia fina a escorrer-lhe entre os dedos. E ele descobre-se, enfim, apenas um homem - perdido na sua própria busca de sentido.


A fé, na sua pureza, é como a raiz profunda que sustém uma árvore em plena tempestade. É a força invisível que, mesmo quando o vento uiva e o mundo estremece, nos mantém firmes. Mas, quando essa raiz se desfaz, o solo torna-se instável, e o vazio que se abre é tão vasto quanto a terra sem fim. O Cardeal Lawrence é o espelho da nossa humanidade mais crua: vemos nele não apenas a perda da fé religiosa, mas a perda de si mesmo, daquilo que lhe dá sentido no mundo. É um homem dilacerado, que já não sabe onde encontrar consolo, nem onde depositar as suas esperanças. A sua crise não é apenas pessoal - é existencial -, e a sua dor ressoa como um eco surdo no coração daqueles que o contemplam... ainda que poucos se importem.


Mas, como toda a dor verdadeira, também a de Lawrence guarda em si o embrião da mudança. No seio das pressões do conclave, entre as sombras das intrigas que serpenteiam pelos corredores do Vaticano, o Cardeal carrega dentro de si um combate que ninguém vê. Não é uma batalha contra dogmas ou inimigos visíveis, mas contra o abismo silencioso que se abre quando já não se acredita. E, paradoxalmente, é nesse esvaziamento - nessa consciência da ruína interior - que algo começa, subtilmente, a germinar. Aquilo que parecia a ruína total, a queda irreversível da fé, revela-se como húmus para outra forma de crença, mais viva, mais humana.


À semelhança do rio de Heráclito, Lawrence descobre que a fé não é mármore, mas água - não uma certeza inquebrantável, mas uma corrente que se molda às margens do tempo. É, como nós, feita de hesitação e esperança, de falência e recomeço. E mesmo quando tudo se obscurece, ela escava subterrâneos por onde, um dia, voltará a fluir.


A via-crúcis de Lawrence é um caminho de redenção, mas não é uma redenção fácil. Não há atalhos, para a cura, não há palavras mágicas que o libertem da sua dor. Mas, aos poucos, ele começa a compreender que a fé verdadeira não reside na certeza absoluta, mas na aceitação do erro, da fragilidade, da dúvida. Ele começa a aceitar que, talvez, a verdadeira fé seja a que não teme perder-se, pois é através da perda que ela se reinventa, que se refaz, que renasce.


É nesse lento processo de reconstrução que Lawrence encontra uma verdade simples e profunda, a fé não exige perfeição, não exige respostas definitivas. A fé, na sua essência, é feita de tentativas, de recomeços, de fragilidade e de coragem. A sua busca já não é por um ideal inatingível, mas pela verdade que reside no coração humano. Ele começa a olhar para si mesmo com mais compaixão, com mais gentileza, e, ao fazê-lo, começa a ver o outro com os mesmos olhos. A sua caminhada não é apenas de regresso a si mesmo, à sua própria humanidade.


Ao longo do filme, não assistimos apenas a uma encenação de bastidores da Igreja, com seus jogos de poder e disputas veladas, quase como se estivéssemos diante de um reality show em tons soturnos; somos, sobretudo, conduzidos aos labirintos da alma humana. É nesse terreno íntimo que a dúvida deixa de ser um inimigo e se revela como possibilidade. O Cardeal Lawrence, ao perder a fé que o sustentava, encontra algo mais essencial: a consciência da sua própria vulnerabilidade. E é nesse reconhecimento - doloroso, mas libertador - que ele compreende que a fé não está na rigidez da certeza, mas na capacidade de, mesmo ferido, continuar a caminhar.


E assim, ao final da sua peregrinação, Lawrence não se torna um homem perfeito, mas um home novo. Não encontrou a resposta final para seu dilema, mas encontrou a capacidade de viver com a dúvida, de a aceitar como parte de si. A sua fé, agora, já não é intransigente, mas flexível, como o vento que se adapta ao campo. Reconcilia-se não só com Deus, mas com a sua própria fragilidade - e é nesse reencontro que, finalmente, se encontra. Não num dogma, mas num abraço acolhedor, profundo e humano.


"Conclave" recorda-nos que a fé, tal como a vida, exige constante reconstrução. Não é uma certeza imutável, mas um terreno em movimento, onde  cada dúvida tem o peso de uma oração.

O filme de Berger não romantiza a fé, nem a apresenta como um escudo infalível. Pelo contrário, mostra-se como algo vulnerável, exposto às fissuras do tempo, da responsabilidade e da consciência. No centro da narrativa está um homem, o Cardeal Lawrence, que, diante das estruturas sólidas da Igreja, confronta o colapso silencioso da sua própria crença. O que "Conclave" propõe, com delicadeza e firmeza, é que há valor - talvez até salvação - em reconhecer esse abalo. E que, mesmo no vazio, no silêncio ou na hesitação, pode residir um caminho possível. Não de regresso ao que se era, mas de descoberta do que se pode ainda ser.



Imagem: reprodução/divulgação Diamond Films

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