terça-feira, 10 de abril de 2018

Lula e o Brasil: cenários do pós-julgamento

Artigo de Gustavo Conde*, no Le Monde Diplomatique/Brasil, em 02/02/2018 - "No brasil, o anteparo que mais perturba a compreensão dos fatos políticos é o descompasso extraordinário entre a realidade empírica e a narrativa noticiosa da imprensa secular. São divorciados no papel e no religioso".

A confirmação da condenação de Lula pelo TRF-4 foi uma espécie de spoiler judicial: todos já sabiam e mesmo assim todos ficaram chocados. Não admira que uma emissora de televisão tenha antecipado o resultado da votação em algumas horas. A tabelinha entre o Judiciário e a imprensa no Brasil remonta aos velhos tempos de Pelé e Coutinho no Santos: enquanto um enfiava a bola, o outro já ia fazendo a resenha. Bons tempos do glorioso futebol sul-americano. 

O tecido democrático brasileiro parece sofrer ataque massivo de traças. Traças vorazes que passaram bons anos em incubação. A fome é tal que já não resta muito para consumir. Falta a previdência social e empresas públicas, trançados suculentos de puro algodão. As traças salivam de ansiedade.

Todo esse banquete não se completa nem se significa sem a simbologia do julgamento de Lula. O julgamento de Lula foi a senha para todos os movimentos que se assanham e se precipitam nesta puída desbotada democracia.

A confirmação da condenação de Lula, ocorrida no último dia 24 de janeiro, portanto, reorganiza o campo eleitoral, pelo menos em tese. Ela era essencial para o segmento que alçou o poder via impeachment, fenômeno conhecido aqui no Brasil como "golpe". É uma condenação que não comporta apenas uma leitura. Tal como a conjuntura política no Brasil, ela é complexa, ostenta cifras heterogêneas e desdobramentos difusos, no limite do imponderável.    

A ruptura democrática e a morte do prognóstico

Uma das consequências que essa ruptura democrática trouxe ao Brasil, dentre tantas, foi a morte do prognóstico. É como se todo o regime de previsões reservados à esfera política fosse agora realizado por economistas, tal é a impossibilidade de acerto. Prever equivocadamente, no entanto, é uma arte e, tal como uma arte, enseja ponderações narrativas e fáticas. 

Poder-se-ia dizer: de todo o acúmulo de prognósticos mais ou menos factíveis, outros cenários podem ser desenhados. A rigor, a previsão e o cenário vão do delirante e paranoico ao fleumático e conservador. A linha tênue que os separa é mais tênue, é turva.   

Descompassos narrativos e redes sociais

No Brasil, o anteparo que mais perturba a compreensão dos fatos políticos é o descompasso extraordinário entre a realidade empírica e a narrativa noticiosa da imprensa secular. São divorciados no papel e no religioso.

Decorre dessa separação o estado permanente de tensão social e de pertubação digital que grassa no território brasileiro. As redes sociais no Brasil não correspondem às redes sociais norte-americanas, europeias ou árabes. Aqui, há muito mais coisas entre o céu e a terra digitais do que pode imaginar a nossa vã e obsoleta filosofia comportamental do éculo XX.

O usuário de rede brasileiro gosta do tumulto, como sói significar no poema "Nosso Tempo" de Carlos Drummond de Andrade: "meu nome é tumulto". E é um tumulto até certo ponto identificável e solidário às redes "estrangeiras", nas suas ânsias de compartilhamentos e desovas de fake news. Mas, é também muito mais do que isso.

No Brasil, a rede social - e isso á assaz relevante para se compreender o cenário que o julgamento de Lula impõe na conjuntura política brasileira - é a argamassa que edifica, filtra, legitima e dá qualquer consistência ao debate residual que nos permite ainda enunciar e tentar explicar o porquê de tanta convulsão institucional e arbítrio jurisdicional.

O pouco-muito - sic - que se enuncia via mídias sociais é o oráculo para se entender qual seja a reorganização política que vai, aos poucos, se desenhando no Brasil contemporâneo.

A rigor, a comprovação dessa tese é muito singela e, no fundo, quase simplória: as pesquisas de opinião realizadas pelos institutos de pesquisa alinhados com as mídias tradicionais, mas, justamente, a leitura que emerge das mídias sociais, indomesticáveis e indócis ao princípio do discurso único e homogeneizante. 

Quis o destino que se configurasse aqui uma legião de espaços digitais formulados por jornalistas egressos - traumaticamente egressos - das mídias tradicionais, o que resultou numa dicção extremamente mais crítica e ácida se contraposta à narrativa bem comportada e oficiosa - e lenta e velha - da imprensa clássica.

Essa química que subjaz ao regime das informações e do debate acaba por caracterizar um volume de massa de textos sem precedentes. Isso amplia o escopo das múltiplas compreensões que costuram a leitura da realidade factual. Note-se que essa produção vertiginosa de textos tem qualidade e incomoda bastante a parceria sólida e duradoura entre a imprensa mainstream e governos de perfil neoliberal.      

O trending topics discusivo 

O exato dia do julgamento de Lula, por exemplo, materializou talvez a maior massa de textos já produzida num só dia na internet brasileira. Foi uma vertigem. Milhares de juristas, ativistas, cidadãos, jornalistas, sociólogos, bloggers, youtubers, editores, filósofos e intelectuais de toda cepa, escreveram até estalar as mais inflamadas tendinites. O país foi ao limite de glosas e leituras, inclusive na dimensão offline dos taxistas, úberes e frequentadores de bares.

Fosse possível medir o fluxo de textos, talvez o dia 24 de janeiro de 2018 tenha sido o trending topics mundial sócio-digital sobre um mesmo determinado assunto: Lula. A reboque, todas as emissoras de TV, todas as emissoras de rádio, todos os jornais familiares, todos os sites e bolgs, toda a atividade cognitiva urbana que não se encontrava fatidicamente ocupada com alguma outra ação intelectual que exigisse 100% da atenção - como controladores de voo, por exemplo. 

O que dizer de um julgamento como esse, que paralisou o país até seu debute e que o paralisa mais ainda após seu término? 

Os polos políticos e o embate difuso

Como dito no início deste artigo, o julgamento foi um "spoiler judicial". Todo sabíamos que o resultado seria aquele. Não obstante, esse traço farsesco não retira o impacto violento de seu day after. Sigo, primeiramente, por um caminho retórico cheio de sutilezas e pressupostos pouco óbvios. Como diria a fala proverbial dos matutos antepassados: enquanto alguns levam farinha, outros já voltam com o bolo. Ou: é preciso ter em mente e considerar cenários que se encontram interditados pelo clima de terra arrasada que paira tanto sobre um polo político quanto sobre outro.

Definamos esses polos: de um lado, há o polo democrático, que se esforça para garantir o nome de Lula na cédula eleitoral e que deseja ser avaliado pelo conjunto da opinião pública brasileira, enxergando nisso sua força e sua legitimidade. 

De outro lado, temos o polo antidemocrático, que ascendeu ao poder graças a um impeachment, impeachment este considerado pela maioria os juristas seniores brasileiros e internacionais como um acinte à Constituição e aos direitos democráticos, direitos de uma presidenta legitimamente eleita em uma disputada eleição e de toda uma população que depositou naquele sufrágio o documento que garantia a sequência de mais quatro anos de um projeto político. 

Esse polo amarga praticamente 100% de rejeição da população brasileira, neste preciso momento. Sua força inconteste, no entanto, reside na domesticação e no adestramento do poder judiciário, notadamente no Superior Tribunal Federal, e no poder legislativo, comprometido até o pescoço com denúncias gravíssimas não só de corrupção, mas de crimes hediondos e imprescritíveis - a configuração exótica deste legislativo brasileiro é um capítulo à parte que tomaria o espaço de um outro artigo de opinião. 

Esses dois polos que, a rigor, vinham ditando a alternância de poder no cenário brasileiro, nada mais são do que a clássica polarização política de países democráticos afora: direita e esquerda, com suaves modificações aqui e ali.   

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