Política: 'Três cenários para Bolsonaro'
Por Rogério Bastos Arantes*, no Jota.info - Bolsonaro pode ser uma incógnita, mas o contexto institucional e político no qual assumirá a presidência é bastante conhecido, o que nos permite vislumbrar três cenários possíveis para o desenrolar de seu governo. Antes de apresentá-los é preciso considerar que o Brasil dispõe de um dos sistemas políticos que mais dispersa poder, no quadro dos regimes democráticos contemporâneos.
Nos termos do cientista político Arend Liphart, as democracias podem ser comparadas a partir de dois modelos básicos, o "majoritário" e o "consensual".
No primeiro, as instituições são desenhadas para encontrar na sociedade uma maioria política, transformando-a em governo e entregando-lhe a maior soma possível de poder político. Do sistema eleitoral ao sistema de governo, passando pela organização do Estado, mas também pelo papel do Judiciário e pelo tipo de Constituição, todas as principais regras e instituições são voltadas a produzir o governo da maioria. Ainda neste modelo, a oposição não dispõe de mecanismos de veto à vontade da maioria e por isso não representa grandes obstáculos ao exercício do governo.
No modelo consensual, ao contrário, o desenho institucional divide e compartilha poder, desde o sistema eleitoral voltado à representação proporcional da forças politicas, passando pelo equilíbrio de poderes, uma organização federativa do Estado e mecanismos de controle constitucional da vontade majoritária. Neste sistema, minorias são incluídas e exercem poder de veto ao longo do processo decisório, seja no Legislativo, seja recorrendo ao Judiciário e a outras instâncias independentes, levando a decisões finais mais consensuais do que majoritárias.
Mais do que consensual, o sistema brasileiro pode ser descrito como ultraconsensual. De fato, a única instituição de escopo nacional e cujo ocupante pode se considerar representante da maioria social é a presidência, eleita pela maioria do eleitorado brasileiro. Todo o restante do arranjo institucional parece ter se erigido para contrabalançá-la, conferindo representação e poder de veto a minorias forjadas politicamente. Aqui temos uma rigorosa separação de poderes, com legisladores e executivo munidos de mandatos fixos e juízes dotados de estabilidade no cargo, todos independentes entre si. Somos um país federativo, com 26 estados e um distrito federal, mais de 5 mil municípios, todos com autonomia política e funções governamentais próprias, algumas exclusivas e outras compartilhadas.
(...) O PSL, partido de Bolsonaro, conquistou 10,1% das cadeiras na Câmara dos Deputados e terá apenas 4,9% das cadeiras no Senado. Com essas bancadas, não aprovará nem nome de rua. Considerando os apoios partidários recebidos no segundo turno (PTB e PSC, expressamente, e DEM e NOVO, indiretamente por meio de seus presidentes), caso se convertam em base de sustentação do governo no Congresso, elevarão a bancada bolsonarista para apenas 20,9%. Por outro lado, os partidos que hoje apoiam Haddad e constituirão a base da futura oposição, somam 28,3% na Câmara dos Deputados e 22,2% no Senado (vide gráfico). Um pouco mais e eles somarão mais de 2/5 para evitar a aprovação de emendas constitucionais. Nos marcos do presidencialismo de coalizão, a primeira tarefa do presidente eleito seria procurar pelo "centrão" composto por 50,9% dos deputados e 60,5% dos senadores cujos partidos se mantiveram neutros neste segundo turno (...).
É neste quatro que podemos antever três cenários possíveis para o governo Bolsonaro.
Cenário 1 - Bolsonaro adere ao presidencialismo de coalizão.
(...) Esqueça todas as bravatas do candidato que se diz antissistema, mas tem três décadas de atividade parlamentar nas costas e que fez da política a sua profissão. Esqueça suas ideias de de seus apoiadores de romper com o status quo político, de subjugar o Congresso ou mesmo de fechar o STF munidos de um soldado e um cabo. Imagine, embora seja difícil, que ele adeque suas intenções e estratégias às instituições e busque governar por meio delas. Em poucas palavras, que respeite as regras do jogo. Considere que suas propostas dizem respeito a uma série de matérias que não poderão ser reguladas por decreto, mas exigirão de maioria simples a maiorias de 3/5 no Congresso. Não sabemos ao certo quais medidas serão buscadas no Posto Ipiranga, mas dentre as mais claramente anunciadas até aqui, pense como seria possível instituir o ensino à distância para crianças, extinguir a progressão de penas e as saídas temporárias de pressos, reduzir a maioridade penal para 16 anos, rever o Estatuto do Desarmamento e franquear amplamente o porte de armas a cidadãos comuns, tipificar como terrorismo ações de movimentos sociais ligados à reforma agrária ou de luta por moradia, generalizar o "excludente de ilicitude" aos policiais que matam no exercício da função? Seguramente os debates legislativos serão intensos em torno destes e de outros temas, e a bancada governista terá que ser significativamente ampliada para além do partido do presidente, e quiser ver sua agenda aprovada. E mesmo que o governo obtenha êxito em aprová-las, elas serão questionadas no Judiciário, especialmente no STF (...).
Cenário 2 - Autoritarismo legal ou legalidade autoritária
Considere que Bolsonaro tente cumprir o que prometeu, e na forma como prometeu, desvencilhando-se da política tradicional e de suas instituições. Temos larga experiência também nessa direção e boa tradição jurídica à qual recorrer. Refiro-me ao modus operandi do Regime civil militar que se instalou no Brasil a partir de 1964. Governado pela força, mas sempre buscando algum grau de legitimação processual, os autoritários de 64 tinham em mente "institucionalizar a revolução" e para isso desenvolveram uma tecnologia legal que podemos chamar de legalidade autoritária. Atos, decretos e até uma nova constituição (em 1967) foram redigidos por juristas auxiliares e deitados pelos presidentes, mas sempre que possível recorrendo à chancela do Legislativo. Extinguiram os partidos políticos do período pré-64 mas criaram outros dois em seu lugar. Mantiveram eleições regulares para diversos cargos, acatando sempre os resultados obtidos por meio de regras que eles mesmos manipulavam a cada pleito. Não fulanizaram a presidência na figura de um militar em particular, mas governaram como instituição "Forças Armadas", até para assegurar a hierarquia da tropa, que prezavam mais do que a ordem do próprio país. Nos 10 primeiros anos, os militares lançaram mão da legalidade autoritária produzida por jurisconsultos para recrudescer o regime, e nos 10 anos seguintes, para retardar sua derrocada, em meio ao crescimento da oposição, ao declínio econômico e à perda de apoio social (...).
(...) O próprio candidato passou 4 anos em campanha reivindicando o retorno a algum tipo de ordem autoritária, evocando a ditadura, elogiando brilhantes-ultra-torturadores e afirmando que faria o que o regime militar não fez, "matando uns 30 mil (incluindo inocentes). Mais recentemente, o capitão disse que acabaria com toda forma de "ativismo", que vai "varrer do mapa os bandidos vermelhos", que (em nova versão de "Brasil: ame-o ou deixe-o") "essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia". No limite, vão todos para "a ponta da praia", gíria militar que designava a base da Marinha na Restinga da Marambaia, no Rio de Janeiro, que funcionou como centro de extermínio de opositores do Regime pós-64 (...). (O próprio presidente do STF disse recentemente que 1964 não representou golpe ou revolução, mas um "movimento"), é improvável que Judiciário, Ministério Público, Defensorias Públicas e outros órgãos de controle se curvem, como instituições, ao autoritarismo institucional. Da inviabilidade dos dois primeiros cenários pode decorrer, finalmente, um terceiro.
Cenário 3 - Um governo errante, porém mobilizador, estimulador da violência na sociedade e beligerante internacionalmente. E provavelmente curto.
(,,,)Neste cenário, Bolsonaro poderá evoluir para o uso de mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos, imaginando que dispões de maioria social para apoiar suas medidas. A pregação de ódio e a identificação de um inimigo interno a ser combatido seguirão como estratégias dominantes, sob o risco de estimular ainda mais a violência na vida politica e na sociedade. Enquanto os assuntos econômicos permanecerão sob o domínio de seu núcleo íntimo (não menos contraditório, porque composto de economistas supostamente liberais e militares aparentemente nacionalistas) a agenda plebiscitária deverá se voltar para questões de comportamento social, de hábitos e costumes, assim como segurança pública e autodefesa individual. É bom lembrar de sua frase: "se depender de mim, todo cidadão terá uma arma de fogo dentro de casa", num país que detém o recorde mundial de mortes por arma de fogo. E é bom lembrar que boa parte de seus apoiadores espera medidas de moralização da sociedade (...).
(...) Por fim, mas não menos importante, nos dois primeiros cenários Bolsonaro terminará seu mandato. Neste terceiro, parodiando o filósofo Thomas Hobbes, sua vida será "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta." Ao final, sem desprezar a tragédia, nonada.
Estes três cenários são hipotéticos. O futuro, se houver, dirá qual deles há de prevalecer. Mas enquanto isso, observe os sinais do presente. Eles indicarão para qual deles estamos sendo levados. Somente espero que não indiquem a ponta da praia, nem para mim, nem para você ou nenhum de nós.
[Siga para a MATÉRIA COMPLETA:::]
Imagem: reprodução/Foto: Tânia Regô/Agência Brasil
*Rogério Bastos Arantes, é professor Doutor do DCP-USP, graduado em Ciências Sociais (1990), Mestrado (1994) e Doutorado (2000) em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Dedica-se ao estudo das Instituições Políticas.
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